22 de outubro de 2008

Vale a pena ler...

"O tempo é distante. 
Há anos, eu tinha uma namorada com quem costumava passar as tardes de domingo. Ficávamos deitados ao lado um do outro na alcatifa de uma sala num andar alto das avenidas novas.
Pousávamos os pés descalços em cima do sofá e olhávamos para o tecto. Não nos sentávamos no sofá, claro. Essa possibilidade nunca nos ocorreu. Nessas tardes, um dizia uma coisa e o outro ficava a pensar nisso, um dizia uma coisa e ficávamos os dois a pensar nisso, víamos essas palavras projectadas no tecto. Uma das coisas que gostávamos de fazer e que, a partir de certa altura, passámos a fazer sempre, era uma espécie de jogo em que, deitados no chão, com as pernas altas, com o olhar desfocado no tecto, um de nós imaginava uma pergunta que começava sempre com “quantas pessoas”. Exemplo mais simples: quantas pessoas estarão neste momento a ter um filho? Exemplo um pouco mais complexo: quantas pessoas já se engasgaram hoje com uma espinha de peixeespada em Lisboa? 
O tempo é determinante: agora, hoje, este mês. 
Não é a  primeira ocasião em que escrevo sobre este passatempo em que ninguém ganhava e ninguém perdia. Não me consigo recordar onde foi que escrevi antes sobre ele. Creio que, nessa referência passada, o colocava num contexto fictício. Seja como for, tanto faz. Por um lado, hoje em dia, o autoplágio é chique e, por outro, tenho ainda muito para dizer acerca do fascínio que esse jogo causava em mim: a súbita tomada de consciência de uma realidade tão diferente daquela e, no entanto, sobreposta àquela. Lá, nesse tempo, era uma tarde de domingo, nós estávamos deitados no chão, levantávamo-nos apenas para ir buscar limonada ... " 


Sem comentários: